sexta-feira, 29 de maio de 2009

A alegoria de uma fissura



Black Sun over Paris, 1952
[Marc Chagall]



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Beleza: rainha destronada dos corações violados, quem és tu? Tu que durante o dia rufla serena, na tua distância tão ímpar e solitária, por entre os penhascos de que o mundo se faz, sem encontrar vez alguma. Perdida, sua finura invade os tecidos mais grossos e mais consistentes, como uma navalha atenta, fazendo rolar por entre os pés os mais tênues novelos. Tu que estás sempre a se re-fazer para as trocas das máscaras, num subir e descer de escadas ad infinitum. Isenta de fechaduras e cadeados, vives perambulando perante as selvas humanas, afugentada pelo invólucro das coisas que lhe negam a permanência e a estabilidade, num flanar vagabundo, errante. Tu que emerge por entre as frestas de uma janela, numa tarde calma e sonolenta, decalcando marcas numa parede vazia de tão branca. Tu, disforme e assimétrica, marejada senão por um acento.

E então anunciam o seu desfecho: “Irás morrer”, cansados de tanto deslumbre e irradiação miserável. Ela abnega, posicionando o dedo em riste ao horizonte, como se dissesse: “Lá está minha fronteira”. 

Estremecimento.

Entre o céu e o mar, sua sutura desfaz-se profunda, num gesto largo de adeus. Agonizada, gritam as mãos ao alto, tortas, cobertas de bolhas, num lento desbote da urdidura, chamuscada até as pontas. As duas abas do horizonte se fecham. É noite e nada pode se visto. Algo imenso escorre por trás da finitude das coisas e faz-se o mistério duas vezes. Lá está ela tremeluzindo por debaixo de minhas pestanas. Carrego-a comigo sob os etcéteras de algumas penumbras. E no instante exato das tramitações no horizonte, vôo junto ao Fá de um recomeço.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Espectro do asfalto





Noite: selada, inviolável na cadência que me oculta, o nada exposto sob estrias luminosas. Luzes modernas - sinais, sons, passagens abertas artificialmente para a matéria passar. Sentidos alienados,adoentados em alguma superficialidade indecorosa. Aparatos citadinos emoldurados enquanto ilusões decompostas dia após dia. A melancolia após notícias do falecimento de sua irmã (a nostalgia). O que dizer deste abandono? Sentir,apenas. Nada dizer ou pensar. Ficar lá recebendo a descarga toda da vida destemperada, sem adular ninguém - sendo o escorrer que me ocorre da luz por sobre o paralelepípedo, deslizando,deslizando, até o gotejo cansado chegar e tudo terminar.

Um começar




Não acredito. Não...isto só pode ser mais uma brincadeira minha. Que contra-senso!
Jamais imaginaria que um dia conseguisse a proeza mais inútil e moderna de nossos tempos: fundar um blog. E para que? Ora, para nada! Que mais poderia ser? Não sei expor coisas relevantes, nem ao menos reflexões interessantes e bem elaboradas. Simplesmente torrarei meu tempo aqui com inutilidades mais fúteis. Poderia estar guardando numa folha de papel ou num caderninho minúsculo ou, quem sabe, lendo um livro semi-despedaçado;mas,não!! Exponencio a errância da vida e de mim, mais uma vez. Deixo de conservar minhas vergonhas só a mim.

Mas parece-me que só assim,ao menos, supero a futilidade ao compreendê-la ou ao sentir-me compreendido nela. Entrego-me à divagação, à escrita barata e facilmente copiável. Troco uma parte de meu caderninho inútil por um blog inútil, o que acarretará em duas grandes diferenças: traçarei menos garranchos sobre o papel branco,deixando-o na alvura de sempre, e farei destas anotações algo público, disponível aos olhos de todos os curiosos que vivem à procura de coisas estranhas,propriamente humanas, no dia-a-dia. Faço-me em mais uma página do mundo eletrônico;virtualizo a minha vida. Algo nada emocionante, isento de cores,nitidez ou deslumbre. Sem talento, decerto.

Não gostei desta minha iniciativa em definitivo. Para que levar meus dilúvios insignificantes aos demais? Preferiria morrer satisfeito com minhas reflexões retidas só a mim e a mais ninguém. Esta extrema retenção pode aparentar alguém orgulhoso por suas anotações;ledo engano. Sequer leio o que escrevo. Componho algumas elucubrações à partir de alguma legítima inspiração, tentando captar algo que nunca está claro dentro de mim para logo a seguir desertar. Não sei o que faço direito. Tento apoiar as mãos sob as pedras das palavras e elas sempre traem... Nunca tentei pintar ou reproduzir de outro modo estas sensações,contudo creio que daria na mesma. Não ficaria bom.Talvez o lodo esteja nas minhas mãos, sei lá...
E quem sabe realmente o que faz hoje em dia? Paulo Coelho deve saber alguma coisa, já que ele arrecada milhões e milhões....

Desconheço o meu jeito torto ainda. É o que busco saber,nada mais que isto. Escrevo não para ser lido,mas para me fazer comunicável. E como é difícil!!

Enfim, talvez nem leve a sério esta ideia, vítima dos excessos e das intemperanças. Pensarei: "Ah, esta hora eu perdi tentando focar o nada da vida num blog qualquer". Será que alguém ainda terá a audácia insana de gostar? Espero que não, pois isto representará mais uma vergonha para mim. Significará que elas estão perdendo seu tempo aqui ao invés de realizar leituras decentes numa Clarice, Breyner, Pessoa, Camus, Proust,Melville,Borges, Kafka, Hesse,Mann, Dostoiesvki, Tolstoi, etc, etc, etc, ou então em assistir a vários exímios filmes clássicos disponíveis por aí,que sugerem sempre uma boa reflexão filosófica, e também algumas pinturas inimagináveis à superfície de nossos olhos, num Goya, Rembrandt, Grünewald, Redon, Bavcar,etc,etc,etc - fora os Rodin´s e Ibsen´s da vida (para os mais preguiçosos ou exploradores -dependendo do enfoque-, ponham um sonzinho na caixa e a cabeça à deriva). Um elogio qualquer poderá incitar a minha pessoa a largá-los em prol da continuação do blog, isto é, do prosseguimento de novos dizeres vazios e nulos, o que é um absurdo.

Se, por algum acaso realmente obscuro, algum fragmento meu serviu como ponto luminoso de alguma coisa, vão escrever algo às pressas! Deixe suas palavras falarem algo; talvez elas tenham uma sonoridade melhor do que na minha horta.