quinta-feira, 12 de abril de 2012

Insólito voraz


Ancião com as Mãos na Cabeça - 1882
[Vincent Van Gogh]











Nikolai Roslavets
[Prelúdio para piano - 1915]

Intérprete: Irina Emeliantseva - piano

Joaquim se apressava. A mão de unhas carcomidas sobre a pasta cor acre, com papéis de hospital assinados. A pressa comendo sua imperfeição. Caminhando pelo viaduto, a noite envolve seu corpo. Joaquim vê apenas o suficiente para não tropeçar nas calçadas ou cair num buraco de uma situação escabrosa. Acelerado, o olhar processa mais rápido: imagens brutas manifestadas, cindidas de adjetivos e infestadas de contaminações gotejantes. Sorrisos, espirros, beijos, escarros, buzinassos, bocejos e lágrimas. Ora rostos ora cabelos; ora cabelos ora rostos, devassados de polutos adereços: gravatas, ternos, gravatas, ternos, piercings, óculos, verrugas, algodão, vitiligo, camisetas polos, hanseníase, t-shirts, estampas de camisas, fones de silêncio, silêncios sem fones. Mais próximo do chão: cores de se ver saltos. Por que aquela dissimetria? Ou talvez fosse mero acaso de impressão falhada?

O cabelo de Joaquim emaranhava-se na realidade, com a ajuda do suor-tinta do corpo. Suas calças jeans, largas, pareciam embrulhá-lo em pele, como um casulo fechado em baixo e aberto em cima. Estavam enpapadas tamanha ligeireza naquele nervosismo seu tão wozzeckiano.

Leva um susto quando, ao atravessar o sinal, é surpreendido por um homem de imensa barriga verminosa, sem camisa, só de pelos e tatuagens cavucadas, arrastando cinco cavalos que se assemelhavam em natureza ao próprio dono, incluindo os idealizados potrinhos. A força concêntrica era a mesma e a tal ponto que se podia evocar a figura de um minotauro.

Maçã suja. Cidade aberta. Sintomática.

Mas foi no entre-sala da avenida que ele azeda até os fusíveis. Um homem de bicicleta acaba de roubá-lo.

Tserrelin tserrelin são os estalos.

Grita com a voz a soltar veias pelo pescoço: "PUUUUUUUUUUUUUUUUTTTTTTTTTTTAAAAAAAAAA QQQQQQQQQQQUUUUUEEEEEEE PPPAAAAAAAARIRRRRRIIUUUU!!!!"

O menino para de morder a pipoca. A moça no ponto das vans, estica o pescoço, em plena curiosidade.

Joaquim corre o máximo que pode e não consegue. A bicicleta desaparece tão súbita quanto apareceu.

E depois para os lados, voz débil: "VVVVVVVVVAAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIII TTTTOOOOOOOOOOOOOOMMMMMMMMAAAAAAARRRRRRRRRRR NNNOOOO CCCUUUUU!!!!!" "VVIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIAAAAAAAAAAAAAAAADDDDDDDDDDDDDDDDOOOOOOOOOOOOOOOOOOO"

Surta. Aquele seu estar tão catapléxico, finalmente ao fim. Havia chegado ao túmulo quando o seu desespero ultrapassa a barreira da sanidade e o mal-estar vira epígono de ponta cortante, o corpo saindo ao avesso pela boca.

Gritava sem parar. Na frente dos carros, das senhoras indefesas, moças bonitas e meninos inocentes. Estava tudo ali o que nunca soube dizer. Dois rapazes querem ajudá-lo agredindo-o a pontapés e socos. Seus braços caem na total falta de coordenação. As formigas aceleraram os passos, com medo da queda. As baratas voltam ao esconderijo seguro. Grades de ambas as partes, como Olga em Limite.

Um homem segurando duas sacolas pesadas de compra solta a frase: "Deixem ele em paz!" Uma mulher arrepia no mesmo tom: "Covardes!". Dois moleques usando mochilas, trabalhadores do dia-a-dia, se defendendo daquela contra-rotina. Prostitutas olham.
O trânsito para na rua 3x4.

Joaquim no chão, desmaiado. O canto da boca encosta no chão a baba de sua vida.

Só mais um fio. Um fio a mais. Restará?