Amarrota
a gola da camisa de brim e já é quase um começo, embora nem sempre haja
espaço para o pleno amanhecer: aquele imaginado e idealizado. Às vezes é
necessário um cadafalso para fazer-se desperto ou voador. Quem sabe a sorte esteja mesmo na percepção de que as peças nunca estão postas na direção de nosso olhar? Porque quando
examinamos mais de perto, vemos que o travessão antecede a sombra,
marcando a base de todas as esperas.
Esperam
vagabundos, cafajestes, difamadores, cínicos, vaidosos, egocêntricos e
plêiade mais. Esperam pelo que possa ser ideal,imortal, prazeroso. Por isso cruzam as mãos umas sobre as outras quando estão sós, tal qual cruzassem os braços sobre o peito. Quiçá soubessem o calor de uma mão sobre o ombro do outro...seria esta a tal noite de núpcias do instante com a eternidade?
O curta começa com uma expressão morna tanto sonora quanto visualmente, como se se tratasse de sonhos, mas depois surge um desequilíbrio: as pessoas se estagnam, viram zumbis a céu aberto. E elas marcham, indiferentes, rumo ao nada. Elas estão entupidas de nada e nem espaço chegam a ter para o vazio, para o zero que reconecta um ao outro. E tanto que sangram nas mãos, nas vestimentas e utensílios. Há quem observa a marcha acontecendo do outro lado. Não percebem que é também com eles. A visceralidade do noise vai criando tensões bem interessantes. O desfecho é dos melhores, com o vira-lata se alimentando daquilo que sobrou. Experimental, mas bem conciso.
Refrão: Lo Li Lá Lá Lá Lé Lé Ló Ló / Lo Li Lá Lá Lá Lé Lé Ló Ló
Velada, a valsa se alimenta de prazeres inconsequentes, prazeres que se projetam laminados, de modo a embeber a superfície caiada do corpo-a-corpo. Com que sabor virá?
2 - brilho
- Porque assim a força do hoje-agora, futuro não-mais, poderá reagir de maneira favorável a escapar ou pôr chifres onde não se é esperado ter.
- Eu sei. Pareço ter pouco brilho.
- É que ainda falta você cruzar melhor com o acaso. Aí quando se levanta, o brilho aparece. Assim sentado, a sombra aparece.
- Sei...
- Não sabe que o amor suporta o ódio. A felicidade, a ignorância. O encantamento, o erro? - E eu preciso de tudo, menos de razão. Alguma razão de que mereça? - Desrazão com uma pitada leve de amor próprio. Nunca chegou a se sentir? - Apago a luz, todas as vezes. - Alguma vez alguém te forçou a querer? - Nunca sentiu culpa por algo? - Os anos que te aguardam parecem querer dizer mais. - Não sirvo para eles. - E por que perecer pela fragilidade, se teu corpo é janela e porta? Nunca saboreou a profundidade da pele? A transparência do vaso? - Por isso desenho. - Veja só! Teu brilho está no alcance de suas mãos. Basta arrancar a pesada cortina de teus aventais, para que a luz possa contaminá-la de traços firmes e diagonais.
- ...
E mais uma vez a alvorada se fazia chance. Se a vida comia do jeito que comia, havia um corpo que respirava à revelia do mundo exterior. Seria ele finalmente possível?
Window Water Baby Moving
[Stan Brakhage]
1962
3 - dor
Havia me dito que se tratava de algo intratável e inafiançável. Não acreditei. Ao dar um abraço, para além do desânimo que o afetava, percebi o sintoma se deslocar na sua pele vermelha. E isso fez toda a diferença para resolvemos aquele problema de outra forma. Porque a cura não existia, e o tempo não era dinheiro.
One month in the countryside
[Eleni Karaindrou]
"Unreleased recordings" (1990)
as flores são do tamanho dos passos.
e em cada pétala há uma imagem.
e em cada imagem um ninho
que é possibilidade e átomo.
Espasmos? Não, filosofia de vida.
E como dói.
4 - crença
Dizem que o tempo é feito de escolhas. Talvez o tempo seja mesmo feito é de diluição. E o que se dilui é a imagem do que se planeja, de cada redoma, de cada cúpula. Pôr abaixo tudo aquilo pelo que se espera, na curva de uma pulsação. Se um corpo é fragilmente sensível a ponto de sentir algo que não se quer, é sinal de resiliência, que não se atingiu ainda a frequência, isto é, que se está à curva da pulsação.
A crença é o que justifica o som no coração. Isso porque o som no coração não é feito de expectativas. Quando a crença é feita de uma lentidão, dá-se o alinhamento das sobreposições. E esse é o segredo que cada coração resguarda.
Life in a tin
[ Bruno Bozzetto]
5- lembranças
- Acho que lembro de você.
- Eu não poderia dizer que seja recíproco.
- Deixa pra lá.
-Você está me parecendo alguém agora...
- Já conversamos, não vamos nos repetir. Pule pra próxima.
- Se assim deseja...você não é uma escritora?
- Sério, é uma nova perda de tempo, já que não guarda lembrança. Horas conversando por nada. Eu passo. De qualquer forma, obrigada.
- Não
acho que seja "horas conversando por nada". Até porque se há um hiato,
deveria, penso eu, ter alguma vontade em redescobrir, porque é no mínimo
curioso. Isso para mim me é maravilhoso, algo como o "Brilho
Eterno de uma Mente Sem Lembranças". Enfim, mas se isso a desagrada, a
respeito.
-Parece dispensável demais. Obrigada.
- Não vou mais incomodá-la...agora estou começando a me lembrar de quando sussurrei algo no meio do teu ouvido.
- E se levar um tapa pela invasão? O que faria?
- Foi exatamente o que me disse da última vez. E eu diria algo como "Pensaria que se trata de um caso sério. O que é surpreendente, pois pensava se tratar de algo descompromissado".
- Não me lembro disso ter acontecido.
- E eu diria logo a seguir: "O que fazer se os afetos nos governam? E se é essa a instância do humano?"
- Não me lembro em absoluto. Você está inventando! Adeus.
- E seu dissesse que tenho aqui em mãos um registro do que foi conversado?
- Você teria gravado aquela nossa conversa?
- Ah, então você lembra de mim!
- Você é que não lembrou de mim!
- Na época você disse que teria sido um prazer ter me conhecido.