terça-feira, 15 de maio de 2012

Estradas de um só muro


                                                                [Lúcio Cardoso]





Music for small orchestra - 1.Slow, Pensive e 2. In roguish humor. Not Fast 
[Ruth Crawford Seeger]

Intérpretes: Lucy Shelton e Reinbert De Leuuw 
Schonberg Ensemble.


Os inconsoláveis

Desesperados vamos pelos caminhos desertos
Sem lágrimas nos olhos
Desesperados buscamos constelações no céu enorme
E em tudo, a escuridão.
Quem nos levará à claridade
Quem nos arrancará da visão a treva imóvel
E falará da aurora prometida?
Procuramos em vão na multidão que segue
Um olhar que encoraje nosso olhar
Mas todos procuramos olhos esperançosos
E ninguém os encontra.
Aos que vêm a nós cheios de angústia
Mostramos a chaga interior sangrando angústias
E eles lá se vão sofrendo mais.
Aos que vamos em busca de alegria
Mostramos a tristeza de nós mesmos
E eles sofrem, que eles são os infelizes
Que eles são os sem-consolo...

Quando virá o fim da noite
Para as almas que sofrem no silêncio?
Por que roubar assim a claridade
Aos pássaros da luz?
Por que fechar assim o espaço eterno
Às águias gigantescas?
Por que encadear assim à terra
Espíritos que são do imensamente alto?

Ei-la que vai, a procissão das almas
Sem gritos, sem prantos, cheia do silêncio do sofrimento
Andando pela infinita planície que leva ao desconhecido
As bocas dolorosas não cantam
Porque os olhos parados não vêem. 
Tudo neles é a paralisação da dor no paroxismo 
Tudo neles é a negação do anjo... ...são os Inconsoláveis.

– Águias acorrentadas pelos pés.
[Vinicius de Moraes] - 1933


Então Lúcio volta-se para o penhasco, onde as ondas se engalfinham incessantes e, apoiando a perna direita num calombo de pedra, faz do braço sustentáculo para o corpo, naquele mão contra mão, deixando à revelia a aliança na mão esquerda.
 Entrega-se ao tempo, cravando na base, sem dó nem piedade.
 Seus olhos seguem a sombra de um pássaro solitário em desterrado mundo, como se a sua fosse. De longe,ela mais parece combinar em expressão com o tom amarronzado do rochedo, numa grandeza eterna, silente e contínua feito morte.

 (tempo órfão)

 O inteiriço dela se parte ao som do precipício árido e sufocante, de peixe fora d’águas. As distâncias imprecisas, tantálicas. Pedras escarafunchadas em relevo mostram-se quentes, pontiagudas em salitre. O vento silva loucuras em seus ouvidos e cabelos. Poucas nuvens no céu de pura presença.
 Queima, queima a ausência no suor do corpo, empapando a blusa, o paletó, o colarinho e até a gravata.
 Um voyage modelo 78 cor caqui o aguarda a alguns metros dali. Vira o relógio de pulso na direção dos olhos, mas o reflexo do sol o impede de ver. Diz em voz baixa:
 -Acabou.
 Em pouco tempo o suor das duas mãos fixas umedece a calça. Lúcio ao senti-lo recolhe as palmas, na estratégia de espalhá-lo, apagá-lo, pondo-as a alisar o quente tecido. Nem por isso decide desmontar aquele jeito seu, só seu, a quem ninguém poderia reclamar senão o eu-físico dele próprio. Pálido sim, franzino também, mas Lúcio assumido de corpo e alma.
Sobem ao patamar mais elevado, os pensamentos soltos que nem papéis e o corpo à secura da faca a saliva padecer, ao fundo da garganta (e por que não da voz?)
 Vai ao carro como se fizesse tremer a vida que o encilha na promessa do escuro mundo do só e, com a porta aberta, deposita a atenção no oceano com a mesma transparência opaca de minutos antes, agora compassados por momentos de degustação de alguns filetes de água mineral.
 — Para sempre.
 As palavras soltas numa rouquidão desolada decalcam uma angústia naquela sua boca restabelecida que o incomoda. O tom final delas lhe causam comoção, perturbando até as íris que não conseguem encaixar sossego algum.
Entra no veículo. E com o braço agora apoiado no volante, olha para o céu, como se observasse algo de interessante. Mas nada havia senão Lúcio. A quentura do automóvel o desperta pela segunda vez. Por fim, limpa o suor que escorre pela manga da camisa e retira-se.
 Ao abrir a porta do apartamento em que mora há alguns anos, Alceu o recebe com um beijo no rosto:
 — Já ia te ligar.
 Lúcio em silêncio deposita o molho de chaves na mesa e toma três goles refrescantes de água. Continua:
 — Conseguiu ir ao casamento?
 — Perguntei ao Henrique e ele me indicou o caminho.
 Segue para o chuveiro. Esfrega com violência o corpo, principalmente o rosto, com sabão de coco, observando vez ou outra se suas mãos brancas retinham algum pelo. Sentia segurança ao ver-se limpo deles, logo eles a quem tanto lhe dera orgulho na puberdade. “Clarear para não bestificar”, lembra da frase de um tio distante. Não percebia o paradoxo em que vivia. Ao terminar, seca firme com uma toalha de tecido grosso e já seco, beija Alceu e sai sem dar satisfação alguma.
 Num determinado stand de uma loja fica em dúvida se deveria pagar pelo item. Conta as moedas com o dedo na palma da mão, incerto.
 — É esse daqui.
 Põe na bolsa procurando verificar se o fecho éclair está seguro e vai para o cinema. Exibia “A mulher de longe” pela última vez. Está atrasado. Imagens enganadoras desfilam pelos seus olhos planos. Ele sabia que não conseguiria. Mais uma vez sai da sala com a cabeça baixa como a dos pedestres em cidades grandes. Visa o chão, as poças de chuva acumulada no asfalto cinza, o papel de bala azul com o açúcar acumulando sujeira. Chove naquele instante aos cântaros.

 É noite.








A chuva inunda, sem dar trégua. Segue em direção ao carro, molhando-se por inteiro. Num quiosque, a meio caminho, para para comer alguma coisa. Esfregava um lenço sobre a cabeça até ser surpreendido por um rapaz, que muito reservadamente o cumprimenta. Abre um sorriso cristão, como sempre fazia quando não sabia o que fazer:
 — Não tenho dinheiro…
 O jovem maltrapilho tinha os cristalinos dos olhos acesos, fisionomia desalinhada. Apertando a boca pequena, desvia para o canto os olhos, retorna como se quisesse dizer alguma coisa importante e depois, em tom de franca desistência, continua chuva adentro, envolto na capa transparente. Lúcio observa tudo, imune a qualquer reação. De súbito, abre a bolsa num ímpeto e retira o vasinho de porcelana adornado de lá, coberto cuidadosamente pelo jornal. Com o indicador alicia o que parece ter a forma de um gato. Seus olhos abundam em lágrimas.
 O relógio da igreja próxima soa sete vezes, anunciando o início da missa. “Cada tua balada soa dentro de minha alma”, lembra do poeta luso. Visa o chão mais uma vez, as poças de chuva acumulada no asfalto cinza, o papel de bala azul com o açúcar acumulando sujeira. “Basta!”, era o que dizia por dentro, comprimindo o rosto, à beira do impossível de si. Lúcio mais vivo que o próprio coração. Em direção à igreja do outro lado da rua, a porcelana é lançada, se espatifando em mil pedaços. O dono que se ocupava na cozinha, decide vasculhar a razão do alarido.
 Lúcio caminha depressa para o Voyage. O retrato de uma mulher colado no retrovisor, era só o que tinha. Estava longe, muito longe. Não conseguiria…não conseguiria….

REVISADO EM 2.10.2016

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