sábado, 13 de outubro de 2012

Sentimento de mundo

Pela janela, a casa escuta a fechadura. "É noite", diz, apesar das cortinas estarem abertas. Não há sono e, por isso, abertas estão, como quem ainda sustentasse o pano, à espera de alguma coisa que não sol. Janela, você não nasceu hoje. Em ti caminha algum espelho o qual o mundo anseia em colocar para fazer-te aos próprios olhos, mal sabendo ele que você carrega um também, próprio, indecifrável à reles rotina dos seus atos.
Ele acaba de a visitar, agora. Traz consigo uma pilha de imundices, querendo-a manchada e estragada. Sangra a tua vista, a ponto de nunca mais poder ser outra coisa senão aquilo em que te envolveu. Esse é o medo que a faz tremer as cortinas, pois sem poder correr, condenada está a ser quebrada, a sofrer danos irreversíveis. Dependerá da casa se prestar a colocá-la sobre outra margem - e ela não é boba para te perder de vista...
Janela, sabe esse esfumaçar de vida a qual chama de crepúsculo, a mesma palavra dessa coisa em que te metem? Poeira sobra para levantar paisagens, constelações, idílios longínquos dos quais assisto da ponta de minha janela.Às vezes penso que você também se quede por tais fantasias idiotas, e não tão somente da parte do alívio prático, quando o cristalino te recupera, tirando-a do fundo do esquecimento maldito que o mundo a quer. Nocauteada, você sorri depois, por conseguir transfigurar a realidade, sentindo-se satisfeita por te desfigurarem, dando a ligeira impressão de estar acima daquele que a fere...
A sujeira desce, se junta ao que restou das outras vezes e por lá fica como lembrança a reafirmar presença. O relevo cresce, naturalmente. E a cada vez que o mundo desemboca, o coração bate depressa, o pano levantado. Chega um ponto em que estoura e vaza o passado, escorrendo lacrimal até a mesa de sua cozinha refinada, embebendo o tecido de sua gênese espalmada, soberana, tal qual uma estatueta num dia chuvoso.
Cansada, sem se cansar, caminha a presença da janela às portas do se poder sonhar.


Inspirado num vídeo performático de uma querida pessoa.

domingo, 7 de outubro de 2012

Cambalhota ou a capacidade de se entortar direito

  Seated Figure (1946)
[Francis Bacon]

"Señora: en esta historia nada pasa. Lo mismo sucede en la vida, que si algún día ocurre algo es tan inverosímil y absurdo que preferiríamos no hubiese pasado"
Luís Cernuda in El viento de la colina apud Obras completas, Murcia, Siruela,1994. p. 268.



Sozinho, o artista configurava os remendos do palco. Pequeno movimento nas mãos baixas ajeitava o que tinha à disposição: um papel branco e uma caneta hidrocor. Como uma sutil sinfonia, ele segurava as duas no primeiro fio de se fazer discurso. Delas saíam palavras que só criavam sentido se ordenadas na parede - a partir desse momento também pele do artista. Ao passo que as pernas passam a se altefazer, o corpo (antes baixo) ergue a musculatura, a riscar e fazer riscar as vezes, saltitantes formas. Oscar Wilde. Conceitos sobre modernidade e o tempo do já passou. Questões. O corpo sobe, toma a vida das questões e logo poses surgem, ironias, sublevações que extrapolam a zona do palco, tornando-o cada vez mais mundo, com direito a experiências sensoriais e tudo. A camisa cai. Depois a calça. A cueca, esta atraída pela superfície imantada da parede branca, pele de Moby Dick.
Por fim, passa a ser - na íntegra - puro corpo, apesar de já nem tão puro, o corpo. Os tênis da NIKE não desgrudam, como se quisesse acusar o corpo da culpa que tem. Essa observação do objeto que o doma, fazendo dele animal inconteste, de muitos dentes e nenhuma gravata, vem só minutos depois quando a nudez passa a ser colocada de lado e naturalizada perante a normatização de um corpo que sofre a bulimia da indústria e do consumo recalcante. Está nu, a usar focinheira, numa agonia de causar fim. Lateja o púlpito da carne, o corpo mesmo completo, já nada significante frente ao estarrecedor governo do de fora que o cansa e vai cansando ao som do fazer, como se agulha fosse a se aproximar da pele-nossa, através do olhar, parte que fica sem deixar. Vai enrispecendo o corpo, tornando-o mais vermelho, mais cansaço, mais absurdo de agulha, a ponto de gemer, tremer como em delirium tremens, na consumação sem retorno, o corpo só a obedecer e desgastar o forro do limite.
...
Esquisita a sensação quando algo mesmo apontando ao irresoluto, é fim de ponto e tudo, quando sai pela porta dos fundos e fica. Dá a sensação de que aquilo nunca existiu, que não passou de uma indisposição qualquer, mesmo que acontecesse diariamente, sob o peso do excesso que faz de nós consumidores de um só produto, ta qual mais possível fosse amar uma imagem que um coração manchado de sangue por dentro.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Da série "Obras anônimas": Bruno Schulz






Old World
[Tin Hat]



"Não há objetos mortos, duros, limitados. Tudo se difunde para além dos seus limites, permanece apenas um instante numa determinada forma, para deixá-la na primeira oportunidade. Nos costumes, nos modos de ser dessa realidade manifesta-se um certo princípio - o da pan-mascarada. A realidade reveste-se de certas formas apenas para fingir, para brincar, para se divertir. Alguém é um homem, alguém é uma barata, mas essa forma não atinge o essencial, é apenas um papel assumido por um momento, apenas uma epiderme, que logo será tirada.(...) A vida da substância consiste no gasto de inúmeras máscaras. Essa migração das formas é a essência da vida. (...)
Trechos da carta de Bruno Schulz a St. I. Witkiewicz de 1935. BN, 443


O Caderno


Em meio ao esfarelar das horas alguém revirava a estante. Mãos mergulhavam de cima à baixo num movimento de inércia frouxa, como quem retira as pedras de uma ruína há muito esquecida. Lá jaziam páginas e mais páginas da memória humana, letras submersas e destituídas de qualquer função prática e que permaneciam estáticas, ressequidas pela ferrugem e pelo mágico anelo das teias. Os dedos logo ficavam pretos de tanta tintura velha.

Bastou um sopro para as imagens desembaraçarem os grilhões, levantando as asas numa simplicidade muito nostálgica. Foi assim que, repentinamente, um caderno azul se materializou cor. O azul forte da capa com um estilo jovial, adquirido por inteiro desejo de sua mãe para as aulas escolares, fez com que nele se agitassem dias remotos em quando apoiava o cotovelo na beira da mesa e se debruçava sobre aquela relva de folhas alvas para inoculá-las de letras,caprichos e garranchos.

O ruído dos anos atravessados pelo roçar da folha sobre o metal espiralado era inestimável aos seus ouvidos. A estrutura das páginas seguia um ritmo específico quando o então copista procurava repetir os sinais sagrados profeciados pelo professor de Português. Sim, era um caderno de Português e Redação que continha informações imaculadas por um homem de pêlos másculos e bigode engraçado. É fato que não chegara a conhecê-lo pessoalmente e que para muitos sua existência residiu naqueles momentos quando,segurando o bigode com a boca, oscilava a caneta pelas provas e boletins. Usava sempre camisa Polo e uma careca invejosa sobre a cabeça. Às vezes brincava mais do que necessário com algumas meninas, porém isso não empobrecia a didática respeitosa e séria das olheiras esguias.

O indivíduo que segurava o caderno não sabia como aquelas páginas, antes tão frescas de bronze, passaram anos adormecidas como um corpo carbonizado pela chama. Com alguma paciência era possível testemunhar frases que rebolavam as sombras de seu próprio universo, naquele tempo das peregrinações. A mão que agora estirava a leitura sobre a solitária luminária da cabeceira, impregnando-a de rodelas sujas, não era a mesma mão.

Fechando os olhos e deslizando o indicador e o polegar pelas feridas emudecidas das folhas, sentia o tempo nas colorações do leito sossegado; a fricção violenta que outrora fez sucumbir aquele caderno àquelas inscrições inférteis e sobranceiras. Dificil acreditar como,nas tardes serenas pós-recreio, se obrigava a deslizar o pulso — ainda cheirando a requeijão — pelo caderno,cheio de energia, até transplantar todo o conteúdo do imenso quadro negro…

Retirada a pele do infante, uma outra transparece,tão viva e misteriosa quanto o último dia em que o caderno precisou ser aberto no itinerário ingênuo de beato sem causa e o professor dar as caras em sala de aula.

Pequenos exemplos contidos naquelas folhas pareciam dilapidar uma tortuosa saga passada pelo homem de bigode, que resistia sob o estandarte de um poema sem jeito. Quase nunca faltava. Chegava em sala com aqueles braços e mãos cobertas de giz e, levantando o bigode na projeção do nariz imenso, agitava braços como varinhas, que mais pareciam penas fofas, ainda que os dentes lhe apodrecessem a aparência e a idade pesasse a face. Trazia um anel de noivado em uma das mãos, isento de esplendor, que fazia questão de exibir às freiras e padres daquele lugar. E como se divertia naquelas ocasiões!

Vivia reclamando por algo às escuras e sabia muito bem esconder suas amarguras no miolo das frases. Na paisagem de seus exemplos, o recheio vinha carregado de obscura melancolia, como nas pinturas de Adolph Menzel, seja sobre as flexões verbais onde os dias eram chuvosos em Petrópolis ou em algo mais. Às vezes ele se soltava e tentava incrementar com alento, porém repetia-se prenhe de tempestades camufladas e chuvas e Petrópolis; algo que o jovem copista na época nunca se atentara, afogado no contexto, na seriedade dos deveres e na dormência dos dedos. Certa vez, um pouco mais acordado, avistara no braço esquerdo uma tatuagem querendo sair pela manga da camisa. E um pouco abaixo, um músculo montanhoso que certa vez alega ter visto flexionado, para as meninas adoradoras de abacates.

Não havia dúvida de que gostava de sentir-se jovem e revigorado, mas algo entre o ir e o vir costumava minguá-lo de uma maneira bastante estranha.
 Passava as tardes ora no parapeito estudantil ora encolhido a caminhar pelo pátio, sozinho, com o pensamento nas mangas da camisa e um copo de café nas mãos, em passos cada vez mais langorosos e apertados por aqueles sapatos que mais pareciam botas. Quando um padre passava próximo a ele,sorria como quem tivesse engolido um peixe inteiro de uma só vez. Depois sua boca sumia, permanecendo apenas os olhos recortados.

Os dias passavam sob uma mesma afinação de corda até o sinal tocar. Ele ainda permanecia por algum tempo arrumando a pasta preta e a morder o mindinho, mas quando erguia da cadeira, fechava-se em seu bigode, a cabeça mantida baixa e, com as golas soçobrantes da camisa Polo, se retirava em silêncio com o único intuito de estrebuchar seu mal-estar nos corredores vazios, após verificar de lado a outro se alguém o seguia. E alguém estava o seguindo, realmente. Via o quão demorava no banheiro, ensaboando os dedos, passando o papel higiênico umedecido no rosto, endireitando as gravatas das olheiras.

O professor e o aluno partiram, esconderam-se nas folhagens da vida para nunca mais se verem. Como educador, deixara depositado algo muito humano naquelas frases pequenas e didáticas,agora espalhadas em não sei quantos cadernos e estantes ao redor do bairro. Mas alguém ainda o seguia de perto, porque nunca partimos completamente.
(Inspirado em "O Livro" de Schulz, cujos excertos reproduzimos abaixo)


"O LIVRO

Costumo chamá-lo simplesmente o Livro, sem qualquer definição ou adjetivo, e, nesta sobriedade e autolimitação, há um suspiro impotente, uma capitulação silenciosa diante da vastidão do transcendente, porque não existe palavra, não existe alusão, que possam reluzir, emitir um perfume, escorrer num frêmito de susto, num pressentimento do que não tem nome, mas cujo primeiro sabor na ponta da língua ultrapassa a capacidade de nosso deslumbramento.
(...)
O Livro...Nalgum lugar, no amanhecer da infância, na primeira alvorada da vida resplandecia o horizonte de sua luz amena.
(...)
Inclinado sobre este Livro, de rosto flamejante como o arco-íris, eu ardia em silêncio entre um e outro êxtase. Ao mergulhar na leitura esqueci-me do almoço. A intuição não me enganou:era o Livro verdadeiro, original sagrado, embora numa humilhação e degradação profundas. E quando ao anoitecer, sorrindo prazerosamente, colocava a papelada numa gaveta mais profunda, cobrindo-a, para disfarçar, com outros livros, parecia-me que estava colocando o arco-íris, que sempre se acendia de novo, passando por todas as chamas e púrpuras, e voltava mais uma vez, sem querer acabar.
Quão indiferente fiquei agora aos outros livros!
Porque os livros comuns são como meteoros. Cada um tem o seu único momento, o momento em que ergue, com um grito, o seu vôo, feito fênix, ardendo em todas as suas páginas. Por causa de um momento desses, por esse único instante, depois nós os amamos, embora já não sejam mais do que cinza. E às vezes, à noite, passamos por suas páginas frias, movendo, como um rosário, com um ruído de madeira, suas fórmulas mortas.
Os exegetas do Livro afirmam que todos os livros aspiram ao Livro verdadeiro. Eles vivem apenas uma vida emprestada, que no momento de ascensão retorna à sua antiga origem. Isto significa que o número de livros diminui, enquanto o Livro verdadeiro cresce.
(...)
Então,a época genial existiu ou não? É difícil de responder. Sim e não. Porque há coisas que não podem acontecer totalmente, até o fim. São grandes e magníficas demais paar caber num acontecimento. Elas tentam acontecer, elas só verificam se o solo da realidade as aguenta. E logo recuam, com medo de perder a sua integridade na deficiência da realização.
(...)
Aqui ocorre o fenômeno da representação e da existência substitutiva. Um acontecimento pode ser,devido à sua origem e seus próprios meios, pequeno e pobre, no entanto, junto ao olho, pode abrir em seu interior uma perspectiva infinita e radiante, porque o ser superior tenta exprimir-se nele e brilha nele violentamente.

Assim, vamos recolher essas alusões, essas aproximações terrestres, essas estações e etapas dos caminhos de nossa vida como fragmentos de um espelho quebrado. Vamos recolher, pedaço por pedaço,aquilo que é uno e indivisível: a nossa grande época, a época genial da nossa vida.
(...)
Será que podemos arriscar a viagem à época genial?
Passamos o nosso medo ao leitor. Sentimos seu nervosismo. Apesar das aparências de animação, nós também temos peso no coração e estamos cheios de angústia.
Portanto, em nome de Deus - entremos, e vamos embora!"

Texto originalmente publicado na revista Estudos Hum(e)anos, no. 63 

terça-feira, 15 de maio de 2012

Estradas de um só muro


                                                                [Lúcio Cardoso]





Music for small orchestra - 1.Slow, Pensive e 2. In roguish humor. Not Fast 
[Ruth Crawford Seeger]

Intérpretes: Lucy Shelton e Reinbert De Leuuw 
Schonberg Ensemble.


Os inconsoláveis

Desesperados vamos pelos caminhos desertos
Sem lágrimas nos olhos
Desesperados buscamos constelações no céu enorme
E em tudo, a escuridão.
Quem nos levará à claridade
Quem nos arrancará da visão a treva imóvel
E falará da aurora prometida?
Procuramos em vão na multidão que segue
Um olhar que encoraje nosso olhar
Mas todos procuramos olhos esperançosos
E ninguém os encontra.
Aos que vêm a nós cheios de angústia
Mostramos a chaga interior sangrando angústias
E eles lá se vão sofrendo mais.
Aos que vamos em busca de alegria
Mostramos a tristeza de nós mesmos
E eles sofrem, que eles são os infelizes
Que eles são os sem-consolo...

Quando virá o fim da noite
Para as almas que sofrem no silêncio?
Por que roubar assim a claridade
Aos pássaros da luz?
Por que fechar assim o espaço eterno
Às águias gigantescas?
Por que encadear assim à terra
Espíritos que são do imensamente alto?

Ei-la que vai, a procissão das almas
Sem gritos, sem prantos, cheia do silêncio do sofrimento
Andando pela infinita planície que leva ao desconhecido
As bocas dolorosas não cantam
Porque os olhos parados não vêem. 
Tudo neles é a paralisação da dor no paroxismo 
Tudo neles é a negação do anjo... ...são os Inconsoláveis.

– Águias acorrentadas pelos pés.
[Vinicius de Moraes] - 1933


Então Lúcio volta-se para o penhasco, onde as ondas se engalfinham incessantes e, apoiando a perna direita num calombo de pedra, faz do braço sustentáculo para o corpo, naquele mão contra mão, deixando à revelia a aliança na mão esquerda.
 Entrega-se ao tempo, cravando na base, sem dó nem piedade.
 Seus olhos seguem a sombra de um pássaro solitário em desterrado mundo, como se a sua fosse. De longe,ela mais parece combinar em expressão com o tom amarronzado do rochedo, numa grandeza eterna, silente e contínua feito morte.

 (tempo órfão)

 O inteiriço dela se parte ao som do precipício árido e sufocante, de peixe fora d’águas. As distâncias imprecisas, tantálicas. Pedras escarafunchadas em relevo mostram-se quentes, pontiagudas em salitre. O vento silva loucuras em seus ouvidos e cabelos. Poucas nuvens no céu de pura presença.
 Queima, queima a ausência no suor do corpo, empapando a blusa, o paletó, o colarinho e até a gravata.
 Um voyage modelo 78 cor caqui o aguarda a alguns metros dali. Vira o relógio de pulso na direção dos olhos, mas o reflexo do sol o impede de ver. Diz em voz baixa:
 -Acabou.
 Em pouco tempo o suor das duas mãos fixas umedece a calça. Lúcio ao senti-lo recolhe as palmas, na estratégia de espalhá-lo, apagá-lo, pondo-as a alisar o quente tecido. Nem por isso decide desmontar aquele jeito seu, só seu, a quem ninguém poderia reclamar senão o eu-físico dele próprio. Pálido sim, franzino também, mas Lúcio assumido de corpo e alma.
Sobem ao patamar mais elevado, os pensamentos soltos que nem papéis e o corpo à secura da faca a saliva padecer, ao fundo da garganta (e por que não da voz?)
 Vai ao carro como se fizesse tremer a vida que o encilha na promessa do escuro mundo do só e, com a porta aberta, deposita a atenção no oceano com a mesma transparência opaca de minutos antes, agora compassados por momentos de degustação de alguns filetes de água mineral.
 — Para sempre.
 As palavras soltas numa rouquidão desolada decalcam uma angústia naquela sua boca restabelecida que o incomoda. O tom final delas lhe causam comoção, perturbando até as íris que não conseguem encaixar sossego algum.
Entra no veículo. E com o braço agora apoiado no volante, olha para o céu, como se observasse algo de interessante. Mas nada havia senão Lúcio. A quentura do automóvel o desperta pela segunda vez. Por fim, limpa o suor que escorre pela manga da camisa e retira-se.
 Ao abrir a porta do apartamento em que mora há alguns anos, Alceu o recebe com um beijo no rosto:
 — Já ia te ligar.
 Lúcio em silêncio deposita o molho de chaves na mesa e toma três goles refrescantes de água. Continua:
 — Conseguiu ir ao casamento?
 — Perguntei ao Henrique e ele me indicou o caminho.
 Segue para o chuveiro. Esfrega com violência o corpo, principalmente o rosto, com sabão de coco, observando vez ou outra se suas mãos brancas retinham algum pelo. Sentia segurança ao ver-se limpo deles, logo eles a quem tanto lhe dera orgulho na puberdade. “Clarear para não bestificar”, lembra da frase de um tio distante. Não percebia o paradoxo em que vivia. Ao terminar, seca firme com uma toalha de tecido grosso e já seco, beija Alceu e sai sem dar satisfação alguma.
 Num determinado stand de uma loja fica em dúvida se deveria pagar pelo item. Conta as moedas com o dedo na palma da mão, incerto.
 — É esse daqui.
 Põe na bolsa procurando verificar se o fecho éclair está seguro e vai para o cinema. Exibia “A mulher de longe” pela última vez. Está atrasado. Imagens enganadoras desfilam pelos seus olhos planos. Ele sabia que não conseguiria. Mais uma vez sai da sala com a cabeça baixa como a dos pedestres em cidades grandes. Visa o chão, as poças de chuva acumulada no asfalto cinza, o papel de bala azul com o açúcar acumulando sujeira. Chove naquele instante aos cântaros.

 É noite.








A chuva inunda, sem dar trégua. Segue em direção ao carro, molhando-se por inteiro. Num quiosque, a meio caminho, para para comer alguma coisa. Esfregava um lenço sobre a cabeça até ser surpreendido por um rapaz, que muito reservadamente o cumprimenta. Abre um sorriso cristão, como sempre fazia quando não sabia o que fazer:
 — Não tenho dinheiro…
 O jovem maltrapilho tinha os cristalinos dos olhos acesos, fisionomia desalinhada. Apertando a boca pequena, desvia para o canto os olhos, retorna como se quisesse dizer alguma coisa importante e depois, em tom de franca desistência, continua chuva adentro, envolto na capa transparente. Lúcio observa tudo, imune a qualquer reação. De súbito, abre a bolsa num ímpeto e retira o vasinho de porcelana adornado de lá, coberto cuidadosamente pelo jornal. Com o indicador alicia o que parece ter a forma de um gato. Seus olhos abundam em lágrimas.
 O relógio da igreja próxima soa sete vezes, anunciando o início da missa. “Cada tua balada soa dentro de minha alma”, lembra do poeta luso. Visa o chão mais uma vez, as poças de chuva acumulada no asfalto cinza, o papel de bala azul com o açúcar acumulando sujeira. “Basta!”, era o que dizia por dentro, comprimindo o rosto, à beira do impossível de si. Lúcio mais vivo que o próprio coração. Em direção à igreja do outro lado da rua, a porcelana é lançada, se espatifando em mil pedaços. O dono que se ocupava na cozinha, decide vasculhar a razão do alarido.
 Lúcio caminha depressa para o Voyage. O retrato de uma mulher colado no retrovisor, era só o que tinha. Estava longe, muito longe. Não conseguiria…não conseguiria….

REVISADO EM 2.10.2016

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Da série "obras anônimas": August Strindberg


August Strindberg
[John Lundgren]








Suite No.9 "Ttai". I e III 
[Giacinto Scelsi]
Intérprete: Markus Hinterhäuser - piano


"Querida irmã,

se o seu coração estiver cheio a tal ponto de não conseguir se expressar verbalmente, então escreva! Todos aprendem a escrever a fim de confiar seus pensamentos no papel. Você poderia escrever cartas. Cartas são bons e verdadeiros livros.

Escrever não é inventar algo que nunca tenha ocorrido. Escrever é contar algo sobre a sua vida. Mas não meramente como quem adiciona eventos em sequência. Você deve ter algo a dizer que lance luz sobre um aspecto da vida. A arte da escrita consiste em ordenar impressões, memórias e experiências, em deixar de lado as coisas sem importância, enfatizando as mais importantes. Você sabe o segredo que há entre a minha vida e a sua? Nós fomos apenas uma das muitas crianças de nossos pais. Nós não fomos bem quistos por sermos supérfluos. (…)

Nós colocamos pessoas em hospitais psiquiátricos para não nos preocuparmos com o que temos dentro de nós. Esse é o nosso destino, o destino de quem escreve: expor a alma aos poderes que existem. (…) Sua vida é rica de experiências e só você pode revelá-las. A vida tem três períodos: infância, juventude e as experiências no mundo. Cada um é um livro em si mesmo. Não tente revelar seus problemas aos amigos pois eles somente irão falar sobre eles mesmos. Acredite apenas no papel e na escrita.

Seu amigo, August”

[Carta de Strindberg à Elizabeth em 1882].


A Gruta

O assobio do trem irrompe no equinócio dos mundos, espalhando um grito estridente, como a de um gato quando pisamos em seu rabo. Desperta a paisagem sossegada nas sombras desconhecidas que algum homem revela, para seu melhor conforto, através de uma lamparina à óleo sustentada por um par de dedos sobranceiros. Ela parece oscilar a lentidão de um tempo primitivo.

“Como está escuro isso aqui”, pensou enquanto deslocava-se por entre enormes caixas de madeira. As arcadas de luz emanadas descortinavam detalhes como se fossem iluminuras: traços rabiscados em profundidade sobre a base de uma montanha com forte tonalidade marrom em contraponto à brancura asseada, quase clínica, de um guarda-sol de tiras vermelhas, num quadro emoldurado na parede, típico bucolismo suiço; um desenho envolvendo formas geométricas no centro da caixa de madeira, por onde as letras “P” e “K” entrelaçavam-se à letra “I” – as farpas ao redor declamando a existência – ; um afinalado banquinho escuro trazendo um telefone preto como se constitutivo. Não havia exatamente cor naquele substrato mudo. Toda a cor era um mero capricho quando a luz se aproximava, acentuada até a concentração máxima: quando há a sensação de algo por dentro, de uma ferida clara.

Era um espaço sedento por luz. Por cima e através, havia poeira e, no chão, grãos de areia que reluziam como pepitas, só acháveis na mais absoluta escuridão. Garrafas deitadas ao chão palpitavam vazias; duas folhas de jornal amassadas encobriam algo – penugens angariavam a superfície-; um vaso pequeno de planta recém-nascida e há muito ressequida, de terra escura e buraco abissal no meio; um botão perdido repleto de marcas navalhadas pelo uso; um pedaço de unha cortada, como um substrato de um ovo oco aberto; pelos, fios diversos enrodilhados em coisa qualquer. O homem encarnava a figura de Prometeu em meio a tamanho abandono, como se fosse o próprio solstício daquele lugar. Ainda que procurasse arrancar dali o máximo de certeza possível sobre as coisas, surpreendia-se a cada instante com o que sentia e com o que achava que sentia, a começar pelo ruído de vidro moído ou pedra de pequeno porte que o acompanhou no primeiro minuto em que pôs os pés naquele recinto – provavelmente encavado na sola de um dos sapatos. Mas estaria a pequena coisa lá há mais tempo?

Seu coração acelera ao descobrir que aquele silêncio dissimula, pondo à prova o próprio estatuto de segurança que os objetos possuem quando não são vistos, quando não estão sendo algo. Pernas compridas e articuladas tomam vida própria e desatam a subir, fluindo, aumentadas na parede pela lupa das distâncias, para alguma reentrância erma do telhado engolir e desaparecer. Algo como uma barata é facilmente confundida com um acúmulo de sujeira. A lógica matemática do equilíbrio harmônico ilude e alucina. Elefantes, cabeças humanas, faunos, o mundo como potência numa caixinha insignificante: sonho e pesadelo, ao molde goyano.

Ele permanece atento, incólume naquele não mais que virar de página.

Quando um chiado se espicha alto à esquerda, o barulho se faz claro e real, sem eco que recorra aos espaços da imaginação. Eleva a lamparina à altura da cabeça, confiando na sua percepção. A sombra de uma teia emerge graúda e sem aranha. Pode tanto estar em qualquer parte como não estar em parte alguma. Um objeto cai atrás de si. Ele vira. Remotos sons de engrenagem à todo vapor. A luz reflete o vidro da janela. Ele aparece invertido: o chapéu de aba larga na cabeça mais parece um capacete; as roupas, uma armadura de ferro. Os olhos fundos a girar magia por toda a parte. O suor desce pela têmpora, a boca alarga, aberta.

Julga ver uma cruz diminuta no vidro. Uma mosca cheirando a percevejo percorre a ponta de um de seus dedos. A parede enfestada delas com as respectivas asinhas transparentes, tronco verde-escuro que lembrava a coloração da caveira flutuante do absinto, e globos oculares a atearem chamas. Repentinamente um forte odor lhe arrebenta as narinas e passa a ocupar seu pulmões, como pó de silica.

Ele sente uma vontade irresistível de correr, no entanto ele não corre. Para, estica os braços e as pernas ao máximo como se espreguiçasse o fluxo de sangue dentro de si, fechando os lábios fortemente como quem aguça as pupilas de certezas. As palavras rolam pela boca que é nesse momento uma fresta diminuta: “são apenas grãos que se movem!”. Sai cortando com o corpo a atmosfera, isento de si e do mundo, inconsequente, até chegar à janela, arregaçando-a de uma só vez, ferozmente. Seus pulmões abocanham, renovados, grandes quantidades de ar puro do descampado à sua frente que corre. O sorriso vitorioso estampa no rosto. Negras florestas na linha do horizonte decalcam fronteiras infindas com as montanhas, por onde o céu faz aparecer, enluvado de esmeros noturnos. Observa com a sombra nos olhos, a constelação de Andrômeda, de Orion, a sempre esperançosa Sírius, aquele pedregulho ao qual deram o nome de satélite natural, tão esburacado quanto um rosto humano avistado na rua, pela manhã. Olha para trás. Não há nada além da fragilidade no que observa. Pega um bloco em um dos bolsos e traceja algumas retas oblíquas, com as inicias “P.K=?”, “I=iodo”, “heliotrópico”. Ao lado: “olhar biblioteca”.

A trinca da porta balança ao som de um baque. Novamente olha para trás. Umedece a boca e, com a língua ainda encostada nos lábios inferiores, diz num ímpeto explosivo: "Bah, amanhã eu procuro". Cerra a janela e retoma a mesma trilha, agora num percurso diferente: os dedos mais frouxos agarrando a alça da lamparina, como se dependurasse o ser um pouco mais esclarecido.



Texto publicado originalmente na revista Estudos Hum(e)anos, no.55

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Insólito voraz


Ancião com as Mãos na Cabeça - 1882
[Vincent Van Gogh]











Nikolai Roslavets
[Prelúdio para piano - 1915]

Intérprete: Irina Emeliantseva - piano

Joaquim se apressava. A mão de unhas carcomidas sobre a pasta cor acre, com papéis de hospital assinados. A pressa comendo sua imperfeição. Caminhando pelo viaduto, a noite envolve seu corpo. Joaquim vê apenas o suficiente para não tropeçar nas calçadas ou cair num buraco de uma situação escabrosa. Acelerado, o olhar processa mais rápido: imagens brutas manifestadas, cindidas de adjetivos e infestadas de contaminações gotejantes. Sorrisos, espirros, beijos, escarros, buzinassos, bocejos e lágrimas. Ora rostos ora cabelos; ora cabelos ora rostos, devassados de polutos adereços: gravatas, ternos, gravatas, ternos, piercings, óculos, verrugas, algodão, vitiligo, camisetas polos, hanseníase, t-shirts, estampas de camisas, fones de silêncio, silêncios sem fones. Mais próximo do chão: cores de se ver saltos. Por que aquela dissimetria? Ou talvez fosse mero acaso de impressão falhada?

O cabelo de Joaquim emaranhava-se na realidade, com a ajuda do suor-tinta do corpo. Suas calças jeans, largas, pareciam embrulhá-lo em pele, como um casulo fechado em baixo e aberto em cima. Estavam enpapadas tamanha ligeireza naquele nervosismo seu tão wozzeckiano.

Leva um susto quando, ao atravessar o sinal, é surpreendido por um homem de imensa barriga verminosa, sem camisa, só de pelos e tatuagens cavucadas, arrastando cinco cavalos que se assemelhavam em natureza ao próprio dono, incluindo os idealizados potrinhos. A força concêntrica era a mesma e a tal ponto que se podia evocar a figura de um minotauro.

Maçã suja. Cidade aberta. Sintomática.

Mas foi no entre-sala da avenida que ele azeda até os fusíveis. Um homem de bicicleta acaba de roubá-lo.

Tserrelin tserrelin são os estalos.

Grita com a voz a soltar veias pelo pescoço: "PUUUUUUUUUUUUUUUUTTTTTTTTTTTAAAAAAAAAA QQQQQQQQQQQUUUUUEEEEEEE PPPAAAAAAAARIRRRRRIIUUUU!!!!"

O menino para de morder a pipoca. A moça no ponto das vans, estica o pescoço, em plena curiosidade.

Joaquim corre o máximo que pode e não consegue. A bicicleta desaparece tão súbita quanto apareceu.

E depois para os lados, voz débil: "VVVVVVVVVAAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIII TTTTOOOOOOOOOOOOOOMMMMMMMMAAAAAAARRRRRRRRRRR NNNOOOO CCCUUUUU!!!!!" "VVIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIAAAAAAAAAAAAAAAADDDDDDDDDDDDDDDDOOOOOOOOOOOOOOOOOOO"

Surta. Aquele seu estar tão catapléxico, finalmente ao fim. Havia chegado ao túmulo quando o seu desespero ultrapassa a barreira da sanidade e o mal-estar vira epígono de ponta cortante, o corpo saindo ao avesso pela boca.

Gritava sem parar. Na frente dos carros, das senhoras indefesas, moças bonitas e meninos inocentes. Estava tudo ali o que nunca soube dizer. Dois rapazes querem ajudá-lo agredindo-o a pontapés e socos. Seus braços caem na total falta de coordenação. As formigas aceleraram os passos, com medo da queda. As baratas voltam ao esconderijo seguro. Grades de ambas as partes, como Olga em Limite.

Um homem segurando duas sacolas pesadas de compra solta a frase: "Deixem ele em paz!" Uma mulher arrepia no mesmo tom: "Covardes!". Dois moleques usando mochilas, trabalhadores do dia-a-dia, se defendendo daquela contra-rotina. Prostitutas olham.
O trânsito para na rua 3x4.

Joaquim no chão, desmaiado. O canto da boca encosta no chão a baba de sua vida.

Só mais um fio. Um fio a mais. Restará?