Chegava
sempre de surpresa e batia na porta. Mais especificadamente naquela
porta com o tapete listrado. Tratava-se de uma república de estudantes,
com um corredor de portas feitas para bater. Em cada porta havia uma
cor, um costume ajambrado a enfeitar a fachada. Mas sempre, sempre
quando alguém no corredor se dirigia na direção dele, a reação não era
das mais coloridas. Estar consigo mesmo é uma raridade absoluta num
mundo em que os privilégios segregam.
Na
maior parte das vezes a permanência dele ali por minutos ou horas à
espera daquele mágica abertura de porta lhe trazia uma ansiedade
tamanha, mesmo que pensasse (ou quisesse pensar) ao contrário. Isto
porque esperar por duas ou três horas não garantia absolutamente nada,
por mais que buscasse depositar a atenção em algo, por mais que houvesse
chance para flutuar. Mas quando o acaso se deparava com o cotidiano dos
fatos magros, o encontro dobrava de tamanho.
Ela
sorria com a sola dos pés descalços. O jeito desmazelado e brincalhão
lhe serviam de charme próprio. Alguém como ninguém. Há que se dizer que
ela tinha um amor especial pela horta localizada no fundo da república,
ainda que naquela altura estivesse com o mato alto e abandonada pelos
demais vizinhos.
Os
desenhos que fazia colava na entrada do quarto. A poesia deixava
próxima da cama, bem ao lado do retrato que tinha com a mãe sorrindo
ajeitando o bracinho do bebê na camiseta. No retrato havia mais que um
sorriso. Havia amor. E ele por vezes se perdia naquela foto, como se ele
próprio estivesse ali também, a ser colocado em cima dos joelhos dela.
Certa
vez após brincarem com as crianças, se abraçaram por um tempo
indeterminado. Parecia que algo havia sido selado entre os dois. A blusa
de cor azul bem molhada dela de encontro ao terno amarrotado dele. Ali
havia entrega. Ali havia o encanto do instante , o canto do cisne e
todas as lendas sonhadas pelos hippies. Talvez não houvesse ciúme que
pudesse encaixar naquelas linhas tão alegres e simples.
Uma semana depois, ela disse estar indisposta e que arrumara um novo namorado. E mais: que era ciumento.
……………………………………………………………..
- Estou com a cabeça nas nuvens. Me desculpe…
Eram duas da manhã e o bar está prestes a fechar.
- Já parou para pensar que as imperfeições nos libertam? — retorquiu.
Naquela
hora da noite, não havia mais competição pelo tom mais alto de voz. À
frente deles, copos semi-vazios e guardanapos marcados pelo líquido
escorrido das garrafas deixavam marcas na mesa de plástico. Podia-se,
inclusive, ouvir um grilo cantando bem ao longe.
Partiram.
Durante o percurso, se não fossem os grilos e o cimento da calçada,
poderia dizer que emudeceram. Os pensamentos concentrados em qualquer
coisa de especial.
-Imagine
você que o olho é um órgão gelatinoso… — disse, acendendo um cigarro e
lançando a fumaça lânguida de modo vagaroso — talvez seja o órgão mais
sensível do corpo, aquele que faz a conexão entre o exterior e
interior. — jogando a gimba no chão — É por isso que precisamos saber
ler os olhos.
Olhando para o chão, com a cabeça curvada e não sem antes gaguejar, retrucou:
-
Eu tenho muito receio dessas leituras …Eu sou tão esquisita que tenho
medo que leiam meus olhos errado…. especialmente se eles demonstrarem o
contrário do que estou sentindo. Sabe, é muito difícil demonstrar que se
gosta de alguém, assim, sem palavras — esboçou um sorriso amarelo.
-
Agradeço a sua sinceridade. A maior parte das pessoas que praticam
monólogos ou que tem preocupações em questões morais acreditam na
seriedade.
- Não sei o que falar, na real.
Desviaram do exo-esqueleto de um sapo. À distância, galhos retorcidos de maneira sinuosa, tais quais cobras fossem.
- Quando a cabeça fica na nuvem, o que acontece? É possível saber?
A
noite estava estrelada. A vontade dele naquele momento era que justos
pudessem ser amar, em algum reboco esquecido ou em algum recôncavo que
não fosse maior do que três palmas esticadas. Mas antes precisava que os
olhos ziguezagueassem de um lado para o outro naquele semblante dela,
que pusesse as mãos entre os ouvidos e que se lançasse sobre aquelas
águas. Como demonstrou um pouco de insegurança quanto ao momento, meio
sem saber o que fazer, foi se deixando levar, acreditando num acaso que
fosse mais fortuito. Mas ela não estava lá. E a caminhada
misteriosamente se seguiu.
Depois daquele dia, nunca mais soube dela.
………………………………………..
Havia
um tempo em que confundia abraços apertados com beijos bem dados. No
limbo das indefinições o instante se atravessa de demandas e
expectativas que brilhavam, como o frescor de um vegetal indo de
encontro ao primeiro feixe de luz e o crepitar interno das frutas.
Atravessa
uma ou duas ruas até a fosforescente farmácia. No outro lado da rua, vê
a figura se movimentar, a esperar o semáforo funcionar. Aqueles vinte
segundos de espera, permitiu que ele resenhasse algum gesto de
frustração. Entretanto, um desenho aflitivo se desenha em ambos os
lados.
O
contato. Finalmente, o contato. Aquele sentir de madureza no corpo. A
viagem trepando em galhos na mais alta copa da delicadeza. Balançam
frágeis aquele calor e quase tão rápido que nem chega a ser feito de
segundos. Desfaz-se o movimento, na retração dos passos. “Demais? E por
que seria demais?” ele pergunta.
Primeira
cerveja, variáveis sorrisos e uma vontade louca de se preencher
silêncios como quem se inebria de si. Passado o horário da chuva, vem a
conta. Para ambas as partes, a conta. Ambos pagam e saem. No tropeçar
das pernas, entre risos e inconsistências, o silêncio mais uma vez não
se coloca. Nervosismo e coisa alguma. No momento final, estertora a
palavra num pulo feito de um abraço demorado, apertado.
- Quando vamos nos ver novamente?
Desta vez, o mais mortal dos silêncios. Não é o bastante para o sonho dela. Ela o empurra, sai de perto e diz “adeus”.
Medita com o rabo entre as pernas. A poesia mais uma vez o entope.
-
Já
sabia de outros carnavais que a idealização era um prato amargo a se
comer e por isso não tarda a começar os trabalhos. Tinha o corpo coberto
por tatuagens e uma série de piercings no rosto. A primeira impressão
nunca é das melhores. Cabe às palavras, portanto, de fazer esse papel
das profundidades. É através delas, aliás, que o chão se constrói pedra
sobre pedra.
Estão
ali, um diante do outro, mas não sente-se à vontade para beber ou para
comer. Ele, por mais sorridente que possa parecer, não está ali. Estava
com a cabeça nas nuvens, a fornicar o momento pelas bordas. E assim como
as nuvens chegam, elas partem, levando-o consigo uma nova forma de
dizer adeus: desta vez sendo ele o primeiro a mencioná-la. Já estava
entupido, mas não de poesia.
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