sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Juventude



Die Begierde - 1878-81
     [Félicien Rops]


Às 9:30 da noite, duas jovens compravam pipoca ao lado de uma igreja evangélica. Duas jovens mulheres, há que se dizer. A textura da pele mostrada com um vigor determinado nas curvas de um provocante decote, por onde no centro uma profunda fenda insinuava esquecida entre os seios, acolhidos pelo sutiã. Como se não bastasse, um batom vermelho realçava os contornos dos lábios carnosos.

- Ih, vai ser mó zueira! - falava alto uma para a outra.  

Duas morenas, razoavelmente altas e distintas. A mais velha trajava uma blusa vermelha de alças e saia curta de tom escuro, com babados. Cabelos lisos até a altura do ombros e uma maneira distraída de virar o pescoço e os olhos. A outra, usava um cóque, blusa branca apertada de alças, o que realçava ainda mais o busto, saia jeans e chinelos brancos. Quatro pernas enormes do lado de fora. Pois bem, tudo começou com o balançar delas no banco do ponto de ônibus. Para cima e para baixo, a simetria do frescor juvenil a cada movimento.  O trânsito ainda fluía com lentidão. Muitos eram aqueles que balançavam os braços para frente e para trás, apressadamente, com uma expressão reduzida ao cotidiano caótico dos centros urbanos. Elas, no entanto, balançando com uma graça desavisada, como nas crianças irrequietas que nada temem, pois a tudo encantam. Volta e meia um veículo buzinava...e não era para outro à frente. Era para as duas pedestres sentadas minutos à fio. Alguma infração deviam cometer para a buzina tanto se manifestar. E a infração vinha daquele fator humano nada esclarecido: aquelas nervuras cnidariantes a vibrar o êxtase do âmago em acentuações crepitantes.
Um rapaz aproveita para gritar da janela do ônibus coisas obscenas. Ela escuta e ri. A outra adoça o momento. Aquela que riu ainda há pouco retruca simulando uma pretensa má audição. Ele capta a mensagem e procura afirmar o mesmo, com firmeza. Ri mais o canto da boca e o sorriso lânguido se espraia, como um lençol morno. A jovem tenta se esquivar com uma pretensa incredulidade. Ele aproveita para dar a volta por cima e na falta de palavra certa, arrisca um recomeço. Imperiosa, o interrompe, perguntando por um isqueiro. Como não fuma e  não há de negar a quem muito deseja, arregala os olhos para alguém próximo, um velhinho franzino.

- Tio, me empresta o fogo?

Sem dizer palavra, apalpa o bolso do paletó e tira algo metálico de dentro. O jovem o apanha, aproximando-o dela que neste momento se encontra com um cigarro na ponta da boca, levantando-se na ponta dos pés. Concentração no fogo. Uma longa baforada é despejada. A oportunidade faz a mão avançar depressa até não só tocá-la, mas segurá-la.

- Vô te visitar dia desse.
- Num vai me encontrar por lá.
- Sei onde mora.
- Se for se meter por lá,  vai levar bala.
- Qual é, gata? Eu conheço o chefe de lá.

A amiga pede para segurar o cigarro aceso na boca com os lábios, enquanto tenta encostar o cigarro apagado de sua boca. Olha decididamente para os olhos da jovenzinha que naquele momento sorri, com o cigarro em brasa, atentando-se ora para ela ora para a ponta do cigarro. Como não ventava, acendeu rápido. Seguram, por fim, os cigarros entre os dedos em meio a  uma risada sincera de ambas as partes.

-Ô,ô,ô! Eu também quero!
-Vá se catar, moleque!

O ônibus parte.

- Te ligo!
- Troquei de número...
-Vá se fuder, Gabriela!

As duas voltam a se sentar no banco, com seus respectivos cigarros acesos à mão, trocando miúdos sobre o tal rapaz. Conversam sobre as trapalhadas dele, de quando deixou o celular próximo da cama para volta e meia acessá-lo, preocupadíssimo, conferindo se algum amigo tinha alguma notícia ou solução para o sumiço da moto ou então da vez em que disse estar preparado somente para uma rapidinha e terminou ficando quase 6 horas até que batessem à porta, reclamando. Gabriela divertia-se. Sua amiga também, com um sorriso largo. A fumaça emanada da queima empesteava o ponto, naquele momento onde todos já haviam dispersado. Esperavam sentadas, ao som do silêncio gradativo que subia, fazendo delas as grandes e únicas estrelas.

Um homem de boa aparência chega e, em minutos, se avizinha. Olha, olha, rastreia as duas de cima a baixo de um lado a outro. Quando as duas se calam, percebe-se que balbucia algo em baixo tom. A discrição corresponde à roupa social e a mala que carrega na mão esquerda.  Elas escutam em silêncio, como se pensassem para si. Não há mais assunto entre elas. O homem balbucia algumas palavras e depois volta a olhar distraidamente para a rua, os ônibus, como se nada houvesse acontecido. Gabriela olha para o chão e a amiga para um lado e para outro. A senhora que há pouco estava sentada ao lado delas corre para tomar a van, liberando espaço para que o homem sente. Ele tem uma pinta no canto da boca e pode-se dizer que tenha entre 25 a 35 anos, além de um sinal de calvice na coroa da cabeça. Revira o bolso e pega o celular. Permanece olhando o visor, apertando aqui e ali, olhando volta e meia para a curva da estrada onde os veículos surgem, como se não houvesse acontecido absolutamente nada ali. Mas de repente, vira a cabeça de leve e é possível escutar em baixíssimo tom:
- Qual é o seu número?
As pessoas recém-saídas da igreja passam a lotar o ponto e tanto que já não é mais possível ver coisa alguma, além do burburinho típico de vozes de diferentes timbres se entrelaçando uma nas outras.
A van esperada se aproxima e ele se despede com um:
- A gente se vê amanhã?
É possível sentir um levantar de ombros por parte de Gabriela. O homem parte com um sorriso de pura satisfação. Talvez houvesse dito "tchau" ou "até", mas sem dúvida o que mais a amargurou foi aquele riso lúbrico de puro ego satisfeito.
Quando o homem entra no veículo, Gabriela trata de falar ao pé do ouvido de sua amiga que acena a cabeça e dá uma tragada mais intensa.
Quantas vezes afinal teria confessado o seu ser com aquela outra, espelho dela? Afeiçoou a ponto de apresentar o ego sem se lamber. Beija o espelho, é verdade, mas como o espelho é a outra, o mundo recebe como se fosse dela.   
Finalmente ele a quem tanto esperavam chega. Elas sobem as escadas. É possível ouvir o restante das gargalhadas. De quem, afinal? O silêncio é vasto... os ruídos permanecem.  



 Dúvida:
(Em quem o tempo, afinal, tem mais passado? No homem discreto? Nas moças indiscretas? Ou noutra que nem entrou na história? Não se sabe. Monalisa sorri o sonho que teve no qual jamais saberemos. Saberá a própria explicar a razão pela qual continua a sentir daquele jeito e não de outro? É um olhar no espelho que não desespera.
    
   
                                       
    Jeune & Jolie - 2013
         [François Ozon]
 

Continuar é a moeda kafkanesca que exime, mesmo sob o risco da assombração. Continuar quando não se tem endereço além do corpo e das próprias forças oriundas dele. Quando termina, afinal, aquilo que começou um dia bem antes do nosso conhecimento?)

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