quarta-feira, 5 de março de 2014

Apogiatura

“Facts become art through love, which unifies them and lifts them to a higher plane of reality”
[Sir Kenneth Clark. The landscape of fact  in Landscape into Art. Edinburg: Pelican Books, 1956. p.31]


Mãos se abraçam acobertando as falhas das falanges. Pele na pele, pelos: entrosação de um em muitos.  Duas silhuetas miram o horizonte crepuscular, misto de vermelho e amarelo. Ombros encostados, firmes no toque. Nas retinas de quem olha: quatro janelas abertas, posicionadas como canhões ao mar. A cabeça tombada para a cabeça alheia, como se tratasse de uma eternidade. Ternura, complementação sentimental, desabandono. Diz-se:

"Ainda há tempo de arfar o peito em inteira intimidade.  
Ainda há tempo de roubar o beijo da tortura das distâncias
Ainda há de se ver tempo no calor pousando 
a sorte do sexo
a tempo
de não se querer
mais nada_
.

.
_um vidro translúcido. Vemos uma miríade de cores e recortes imprecisos, com uma claridade que pende para a direta. Adentrando o espaço, há uma lareira e um senhor de bigodes e suspensórios a balançar cadeira de molas. Volta e meia estica o elástico dos suspensórios ao som dos estalos do carvão. Os óculos, pequenos, na ponta do nariz. Balbucia qualquer coisa nos lábios murchos. Uma enfermeira entra no cômodo equilibrando a bandeja. O que lhe parece ruivo aos olhos, atrai sua atenção. Sorri, enquanto obedientemente engole a papa cuidadosamente depositada na boca pela enfermeira.
Na quinta colheirada, tenta falar alguma coisa e, como se não conseguisse, segura o antebraço da enfermeira (que pacientemente enuncia palavras de estímulo para que continue a comer). A olha sorrindo como um bebê diante do fantástico. Permanece assim por um bom tempo até o esvaziamento do prato e da colher bem lambida.
Lá fora: dúzias de pinturas de cavalos selvagens decoram a parede que divide as várias e sucessivas estantes de livros. Nas quinas do cômodo, algumas esculturas femininas. Adormecem centenas de papéis amontoados sobre a escrivaninha que uma vez fizeram-se lembrar na primeira lufada de vento. Os mesmos nomes nos envelopados, datados de pelo menos cinco décadas.

- Quer que eu conte agora um história para dormir?

Ele parece se contorcer de alegria.

- Era uma vez uma menina, uma adolescente alta que adorava frequentar os shows de jazz. Não importava
qual música desde que fosse jazzístico. Bastava um barulhinho qualquer dos instrumentos para bater palmas, gritar, se mexer toda de um lado para o outro, no balanço do ritmo. Mas não chegava a ser uma "veneração", daquelas de abaixar e levantar os dois braços. Vou te dizer porque: volta e meia tratava de querer saber o que acontecia ao seu redor. Sabe-se lá porque! Talvez não aguentasse olhar por muito tempo para o rosto dos instrumentistas. Tá, então havia um rapaz bem colorido e de chapéu a alguma distância. Como não sabia dançar, quase não se mexia. Os dois em sintonia com a música,mas reagindo de maneira diferente. Se não fossem as cores, ela nem teria o notado. Pra que, não é?
-É...
- Não durma antes. Deixe eu chegar até a metade, pelo menos.
- Mas eu não estou...
- Aí, ele a vê com uma certa dificuldade, por ele ser baixo. Mas ela viu e ele também. Isso é o que importa. Estava muito cheio o local. Ele vai se aproximando da tal adolescente, alisando a barba, bem devagar. Em um momento, chega a ficar lado a lado com ela, de frente para as costas dela, na verdade. E numa situação como esta, pouco se pode olhar, senão encostar, não é? - ri -  O senhor sabe, como é, né? Então, ele trata de ser empurrado por quem passa, de preferência em cima dela. O coitado mal consegue bater no queixo da moça! E ela usa óculos, uma armação pequena e delicada. Poderia dar uma cabeçada no queixo e fazer os óculos caírem. Poderia pisar no pé dela. Tudo para depois pedir desculpas, uma aproximação emergencial... - riram os dois.
O senhor põe a mão sobre a dela.
- O que foi? - pergunta a enfermeira.
- Continue, por favor...
- Mas o show continuou, freneticamente e sem intervalos - ela coloca a mão dele entre as duas mãos dela - a única coisa que poderia aproximar seria a dança que ela tirava de letra. Ah, esqueci de dizer! Ele estava na companhia de alguns amigos que dançavam toscamente, girando os braços como velhas barbadas.
- Assim? - puxa a mão para movimentar os braços, com dificuldade, para frente e para trás.
- Talvez - ri - algo bem mecânico, como o homem de lata do O mágico de Oz. Cheio de ferrugem - ri.
- Eles só tinham barba, mesmo.
- Eram velhos jovens que queriam dar uma de garotões. - ri.
- Exatamente! - e volta a segurar a mão dela.
- Pelo visto, o senhor não irá dormir mesmo com essa história - ri.
- Acho difícil, para ser sincero. Está muito divertida!
- Já tomou o remedinho?
- Já! Agora continue!
- Como, se o senhor não vai dormir?
- Tá, vou fechar os olhos. Continue! E chegue mais perto porque não estou ouvindo direito.
- ...bom, aí o que aconteceu foi que o show acabou e imediatamente a moça foi embora. O rapaz disse que iria ao banheiro, mas foi atrás dela. No caminho, encontrou-a pela última vez numa esquina próxima. Ela andava rápido, decidida.
- Um mulher autêntica! Adoro mulheres assim!
- Por aí.... - ri
- E ele então a perdeu de vista?
- O coitado estava sem óculos, acredita? - risos - não via nada!
- A moça?
- Não, o rapaz barbado!
- Poderia até ter confundido com uma outra se fosse durante a noite...
- E era!
- De onde você tirou esta história?
- O senhor gosta de literatura?
- Ora, basta olhar nas estantes. De qual autor você comenta? Um contemporâneo? Seria Kundera, Tanizaki ou....?
- Shakespeare.
- Como?
Dá um beijo na testa e vai se dirigindo à porta.
- Não me diga que...
- Não, não foi comigo que isso aconteceu. Pode ter certeza.
- Mas poderia ter acontecido?
Sorri, sem externar solução. No outro lado do cômodo, o retrato antigo pousado sobre a mesa revela os dois, ele na cadeira de rodas e ela  ao lado, acompanhando. É possível ver em baixo da fotografia uns dizeres anotados à caneta, mas ilegíveis, na penumbra em que se encontra o quarto. Está mais escuro do que o habitual. Tivessem acendido ao menos o abajur do criado-mudo, não sofreria tanto.   
Da janela, é possível escutar o passar do trem com uma agilidade frenética a arrastar consigo tudo que é apagado e esquecido. É um clarão violento, quase. Daqueles que estoura por dentro e faz acontecer coisas antes impensáveis ao senso comum e ordinário dos dias. O extraordinário da realização que move o mundo para cima ou para baixo. Frente ao trem que passa, o cômodo parece mais esquecido ainda com as sombras que não cessam de circular pelos retratos afixados na moldura de formas concisas e industrializadas. Pudesse ser cosida, estaria a se ajustar, imagem a imagem, num aparato fisionômico conciliador, se não fosse aquele outro rosto, aquela outra idade, aquele outro tempo.
Brumas.
Cupins.
No estilhaço.
A casa quando permanece vazia, sem quadros de cavalos ou cadeira de molas, diz também que está aberta, apesar de fechada sob o segredo da lua. Aberto às cinzas que sobrou das imagens, aberto também ao horizonte que nesta hora emergiu, em lúcido vermelho e amarelo.
O sol: duas curvaturas com as extremidades encostadas uma nas outras. À base do primeiro passo, da imagem que se quer fixa à imagem que se revela mais imagem. E como brilha a lucidez deste primeiro passo!

1a versão do conto publicada na revista Flaubert No.2, pág:18-19, em 15.4.2014

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